sexta-feira, 25 de junho de 2010

Encontro Causal


As palavras dos outros, estão carcomendo minhas idéias, estalando meus ossos. São poetas convidados que eu, desavisada de suas intensidades, abrigo em minha casa, eles dormindo comigo, sempre dormiram, e sem serem lidos repousam, repousávamos todos.

Só tem que foram lidos, e quando do acontecido me engasgaram de estupefação por conterem tanto de tudo sem se conterem em nada. Fiquei como a cobra que engoliu o sapo, digerindo em gozo o que me serviram em horário fora dos de refeição. Antropofagia difícil, prazerosa, complexa, arredia, que de vez em quando chega dá azia.

A Elisa (Lucinda) vinha já me aliciando, me amolecendo, sugerindo, introduzindo de leve o Manoel de Barros, que resolvi, consultaria quando fosse propício. E continuo minhas leituras da hora.

Vêm então ela e o Rubem (Alves) papeando em A Poesia do Encontro, sem perigos aparentes, orgias evidentes, ou transtornos eminentes, falando de coisas lindas, curiosas, engraçadas, espalhafatosas, de um jeito tão possível que me senti em casa. Fiquei foi à vontade, tanto que quando novamente foi mencionado o Manoel na história, levantei, tire-o da prateleira sem saber que era preciso cerimônia, e li.

Ele por sua vez me estreou, suas imagens vararam minha alma inteira, sem que houvesse tempo de sequer saber por qual buraco entraram, se pela razão, pelos sentidos, pelas sensações. Susto, frio na barriga, gargalhada descompensada, louca, arrepiada. Manoel disse, dentre tanto, coisas sobre o sol que eu nunca tinha visto mesmo sendo espectadora cotidiana de sua passagem, “No amanhecer o sol põe glória no meu olho”. Disse “o rio encosta margens na minha voz”, e eu emudeci. E sem que mais pudéssemos, sussurrou com a firmeza que a natureza lhe dá, “Sei que meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.”

Parei, fechei o livro lindo, como se fosse um segredo. Deixo-o por perto, olho-o de soslaio, deixo que me olhe de volta. Adio de caso pensado a entrega, sabendo já que é coisa certa.

- Elis Barbosa

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Como?


Foi o silêncio do mundo contra o cricrilar do grilo que me fez, de repente, sentir a densidade da solidão em que me deixou.

Recebi esta manhã, quando o dia ainda não tinha esclarecido para mim, embrulhada em voz irmã, a notícia da tua partida. Entendi sem alcançar. Entendi mas não quis alcançar. Como? Pode? Não me avisaram que planejavas ir. Planejavas? Se estava para acontecer, por que não preparar o caminho? Melhor, por que não me preparar para o caminho?

Sei lá o que é passar todo o resto de uma vida (que pode vir a ser longa, que pode ser de um dia) sem a tua presença na mesma Terra que eu?! Até agora os grandes eram mortos, via-os por fotografias, não tinham movimento como os teus na película. Lembro muito claramente dos movimentos das tuas mãos.

Como pôde colocar assim, na boca do mundo o mel da humanidade de Caim e simplesmente partir?

Não quero compreender, portanto não compreendo. Ainda ontem falava de ti apaixonada, com a estupefação de quem encontrou a Ilha Desconhecida seguindo o mapa invisível que traçaste magistralmente, saciada por não ter ainda dado conta de todas as metáforas borbulhantes no caldo sensual em que nos mistura, em que nos conforta, em que nos provoca.

A irmã que me avisou estavamasnãoestava atarantada, talvez estivesse tão triste que soava confusa aos meus ouvidos, se bem que estes se fecharam ao darem conta do disparate acontecido, e cuspiam a notícia para ver se ela não acontecia mais, nunca mais. Acho que a confusa era eu. Foi estranho saber da tua partida. Sabe, até no fato de ter sido condenada a nunca mais receber letra escrita e ser feliz a mulher próxima, a mais amada, nós pensamos? A pobre não tem mesmo saída, não quererá ser para mais ninguém água.

E agora? É assim? Pois bem, digo que a sua resposta para tudo o que me incomoda foi a melhor, digo que sua audácia me faz corar, que sua franqueza desarma, que o seu prazer inspira, que as suas vistas alcançam céus e gentes e belezas que jamais tinha tido clareza para ambicionar.

Achando que não vai zangar, farei resignada o trocadilho ao qual não posso me furtar, mesmo sendo terrivelmente óbvio: daqui para adiante, uma vez aberta ferida não há mais mago que possa sarar, não poderei mais pedir, esperando para além do que há, “me sara mago, me sara...”

- Elis Barbosa

quarta-feira, 16 de junho de 2010

PAUSA FELINA


À revelia de tudo que passa em seu entorno, na casa da mulher atarantada, o gato dorme muito aconchegado em si, atrás da máquina. Aproveitando dela o calor, se deixa embalar pelo som das teclas frenéticas em que ansiosa bato.

Flagro-o numa pausa necessária quando assaltada pela incógnita de todos os “por vir” que gostaria, sem ilusões de poder, controlar. Vou até à janela da copa ensolarada, aconchegante, buscando calor, buscando respirar da tranqüilidade que mora no dia, mas fora de mim, e lá ele está. Até então não o vira. Quanto se perde por não parar!
O gato, o tempo todo, respirando devagar, esbanjando beleza no seu existir plácido, elegante, moroso, lá está.

Larga mulher, larga essa necessidade de se antecipar!

O gato amarelo, tigrado, de olhos muito verdes, dorme, sonha de leve, certo do agora e nada mais. Mora na certeza de ser amado, e chora sempre que precisa de afago, vez ou outra o arranca de mim, e ele assim me faz parar. Pausa necessária à manutenção da sanidade que sem esse movimento da natureza não tem como equilibrar.

Sou igualmente amada, por que não moro eu também nessa certeza? Por que não me deixo levar? Porque vou forçando até da vida tomar uns tapas para poder parar?

Tenho também afago, nunca arrancado, mas por vezes suplicado, que vem sempre me salvar, então, por que duvidar?

Sossega mulher, que todos os “poréns” haverão de se solucionar, sem que obrigatoriamente se passe tanto penar.

De óculos, muito séria, pesquisando poesia com ares de fato, sou invadida pela Elisa (Lucinda) em sua furiosa beleza falando da tarde que, apesar de tudo, pode-se contemplar bela, morna, estabelecida na passagem das horas que lhe pertencem. Surpreendo-me de não estar eu mesma fazendo desse tempo o proveito para o qual o reservei fervorosamente, ser.

Larga mulher, larga desse constante pensar, desse constante executar. Vem um bocadinho aqui se espreguiçar, que o tempo não é matéria de se ignorar, ele vai passando e levando o que pra trás você deixar!

- Elis Barbosa

quinta-feira, 10 de junho de 2010


às minhas amadas amigas
Repetidas vezes falo em saudade, eu sei.

Talvez alimente a ilusão, como pessoa essencialmente da palavra – esse farol cuja luz dialoga – de que repetindo a coisa ela possa vir a gastar, e quem sabe assim, desapareça.

É ilusão, eu sei.

Só tem que, saber de algo nunca resultou necessariamente em saber lidar com a coisa, então continuo alimentando a ilusão de gastar a palavra para sentir desmanchar a saudade, é tudo que tenho nesse momento.

Estou indo embora, eu sei.

Fui eu quem planejou essa ida, foi um plano gerado de um sonho que descobriram embaixo do meu tapete e não pude mais escondê-lo de mim. Eu sei, eu sabia, eu sempre soube.

Tem que hoje fica evidente (quando é quase chegada a hora), para todos os defeitos, a ruptura entre a realidade de “até agora” e a que será “a partir de então”. E estou surpresa, como se nada disso tivesse que ver comigo, como se a outra fosse quem vai. Saber que fui protagonista de toda a história só aumenta meu ar de estupefação, acordei sem saber onde. Susto.

A postura é polida, o sofrimento é contido todo nos olhos, e dói o machucado que dá toda vez que passo pela lição do desapego e reprovo no final. Essa eu ainda não sei mesmo.

Fazendo o inventário do que levo comigo, concluo que é mais ou menos tudo o que preciso para continuar, me vejo muito melhor, e me reconheço muito melhor, graças aos olhares que compartilhamos sobre tanto, às nossas diferentes perspectivas lançadas de maneiras tão diversas, aos gestos de generosidade e incompreensão, às explicações de si que foram tantas vezes postas na mesa francamente, aos conselhos dados com a contrição de prece, por amor, pelo amor mais completo que há, por amizade. Disponibilizamo-nos a ser do outro a testemunha necessária para se pertencer, se estender, libertar.

Nunca poderei expressar de verdade tudo o que representa ter estado e estar indo, eu sei. Mas, leal ao que foi até agora, divido como posso o que tenho e agradeço por tudo o que me foi dado.

Beijos,
- Elis Barbosa

p.s. manifestem-se sobre o acima, de preferência, quando não mais puderem me ver chorar.